Pesquisadora
resgata importância da obra de Carolina de Jesus, a"poeta da favela".
Por
Nina Fideles
Caros
Amigos
Carolina
Maria de Jesus tinha 43 anos quando foi descoberta pelo jornalista Audálio
Dantas, em 1958, na favela do Canindé, Zona Norte de São Paulo. Na ocasião, ele
escrevia uma reportagem sobre a expansão da favela, que mais tarde seria
removida para a construção da Marginal Tietê. Mineira, negra, semianalfabeta,
mudou-se para a capital aos 17 anos, trabalhou como empregada doméstica, teve
três filhos, manteve-se solteira, tornou-se catadora e em cadernos encontrados
no lixo, relatava seu cotidiano em forma de contos, romances, poesias e até
peças de teatro. Um diário iniciado em 1955 deu origem ao primeiro livro de
Carolina de Jesus, publicado em 1960. Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada
tornou-se um best-seller com mais de um milhão de cópias vendidas em todo o
mundo, traduzido em 13 idiomas, em mais de quarenta países. Apenas no Brasil, o
livro vendeu mais de 80 mil exemplares.
Ao
se mudar para um bairro de classe média, Carolina de Jesus lançou o Casa de
Alvenaria (1961), mas não obteve o mesmo sucesso que o anterior, e o mesmo
ocorreu com as outras duas publicações que se seguiram, que ela própria
custeou. O interesse pela ‘mulher da favela que escrevia’, a curiosidade da
classe média durou pouco tempo. Além de ter sido vista com certo receio pela crítica
literária que desacreditava de sua capacidade. Mas por mais contraditório que
possa parecer, o livro Quarto de Despejo, ou Child of the Dark, na tradução
para o inglês, é utilizado nas escolas e estudado nas faculdades dos EUA,
apenas como simples objeto de estudo, por ser pobre e relatar suas mazelas, sem
a intenção de conhecer a fundo seus escritos.
No
Brasil, Carolina de Jesus ainda não tem o devido mérito reconhecido. Morreu
pobre e praticamente esquecida, em 1977. O centenário de nascimento de uma das
mais importantes precursoras da literatura marginal, da favela, foi celebrado
no dia 14 de março deste ano e trouxe à tona sua história novamente. Mas a data
passará e a luta dos pesquisadores e estudiosos de sua obra, para o
reconhecimento e tratamento adequado aos seus manuscritos, permanecerá. Para
entender um pouco mais sobre a atualidade da obra de Carolina de Jesus,
conversamos com Raffaella Andréa Fernandez, que desenvolve pesquisa de
doutorado no Departamento de Teoria e História Literária da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) baseada nos manuscritos inéditos da autora e
intitulada Narrativas de Carolina Maria de Jesus: Processo de Criação de uma
Poética de Resíduos.
Raffaella
aponta que existe uma grande lacuna de preservação de nossa memória, textual
principalmente, e os escritos originais de Carolina de Jesus, uma escritora
fadada à exclusão, seja em vida ou em morte, ainda se encontram em condições
precárias. E afirma que “o posicionamento deva ser também político no sentido
de não estar limitado à análise desses textos, mas de solicitar um tratamento
especial do material que se encontra em estado de deterioração, sobretudo,
porque parte dele havia sido ‘lançado sobre a lama’, junto à família e aos
arquivos”.
A
contemporaneidade de Carolina de Jesus vai além da data de seu centenário. As
histórias que a “poetisa da favela”, como se autodenominava, relatou e viveu se
repetem nos dias atuais. E sua própria história representa milhares de mulheres
negras, faveladas, mães solteiras, que ainda encontram poesia no dia a dia.
Caros
Amigos – Como foi que o seu caminho cruzou com os escritos de Carolina de
Jesus?
Raffaella
Andréa Fernandez - Tudo começou numa tarde de domingo, na moradia da
Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Marília, quando meu amigo poeta
Milton Mello, então aluno de Filosofia e residente na mesma instituição, foi
até meu quarto e me disse: “Toma Raffa, você que gosta de literatura da
periferia, acredito que vai gostar desse livro”. Naquela semana estava lendo
Cidade de Deus, de Paulo Lins, e hesitando em pesquisar esse livro ou Queda
para o Alto, de Sandra Mara Hezer. Mas quando comecei a ler Quarto de Despejo:
Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus, o livro tomou conta de mim
e nunca esqueci, apenas deixei aquele outro pequeno quarto quando terminei o
livro. Na mesma semana fui procurar a professora Célia Tolentino, minha futura
orientadora, que topou na hora me auxiliar no arranjo daqueles rabiscos de
projeto que mais tarde seria contemplado com uma bolsa pelo CNPq. Na ocasião,
relacionei o best-seller de Carolina de Jesus ao relato de uma
ex-menina-de-rua, Esmeralda, Porque não Dancei, com o objetivo de realizar uma
análise sociológica para pensar quais as mudanças ou continuidades no lugar
social da mulher pobre e negra no Brasil no lapso de 50 anos que separavam os
dois testemunhos. No entanto, ao ler Carolina de Jesus notei a força literária
que marcava suas narrativas de vida como Casa de Alvenaria: Diário de uma
Ex-favelada, Meu Estranho Diário, Diário de Bitita, seu romance Pedaços da
Fome, e seus poemas publicados em Antologia Pessoal com um belíssimo e
esclarecedor prefácio de Marisa Lajolo. A partir daí, tive a certeza de que
precisaria migrar para o curso de Letras para dar continuidade às minhas reflexões
sobre esses intrigantes escritos que me diziam algo além do caráter
autobiográfico. Assim, em 2006, defendi a dissertação que intitulei Carolina
Maria de Jesus, uma Poética de Resíduos, na qual tracei alguns desses percursos
literários na obra de Carolina de Jesus até chegar ao doutorado, hoje
desenvolvido junto ao Departamento de Teoria e História Literária da Unicamp,
sob orientação de Vera Chalmers.
Qual
é o objetivo inicial do seu trabalho? E o que mudou durante os anos da sua
pesquisa?
Inicialmente
procurei os aspectos sociais da obra de Carolina de Jesus com o objetivo de, a
partir dos estudos sociológicos, compreender a condição da mulher negra e pobre
no Brasil, realizando uma reflexão sobre as ambiguidades, observações e
contestações presentes no “testemunho”, inerentes à voz do oprimido. No entanto
a força literária de seus escritos encaminhou a pesquisa para outros rumos e
implicações de análise na área da crítica e da história da literatura.
Entretanto, tal foi o arrebatamento das incertezas geradas diante de seus
manuscritos inéditos de características refratadas que tornou obrigatória a
abertura para uma nova fresta na área da crítica genética de tradição francesa,
de modo a pensar o processo criativo da autora como um todo em sua funcionalidade
orgânica e imaterial a partir de seus originais.
Para
você, qual a responsabilidade, a missão, de estar estudando manuscritos nunca
antes publicados?
Em
primeiro lugar há uma grande lacuna na própria cultura brasileira de
preservação de nossa memória (textual), o que dificulta todo o processo de
acesso e resguardo de documentos em arquivos. Em se tratando de Carolina de
Jesus, a problemática é acentuada, pois como uma escritora relegada ao
esquecimento (sendo somente agora vista com mais atenção devido a seu
centenário), e por não pertencer ao glorioso “cânone” literário, a maior parte
de seus originais não tem um lugar de destaque, de modo que ainda se encontram
em condições precárias, podendo inclusive serem perdidos pela corrosão do
tempo, destruindo folhas de raras tessituras do outro lado da história de nossa
literatura. Assim, penso que, tanto no meu caso quanto em relação aos demais
pesquisadores dos manuscritos da autora, o posicionamento deva ser também
político no sentido de não estar limitado à análise desses textos, mas de
solicitar um tratamento especial do material que se encontra em estado de
deterioração, sobretudo, porque parte dele havia sido “lançado sobre a lama”,
junto à família e aos arquivos.
E
quais as influências diretas que você recebeu ao longo dos seus estudos? O que
mudou?
Observei
que seria impossível pensar os textos de Carolina de Jesus a partir de teorias
literárias que privilegiam os “clássicos”, pois a obra da autora não responde
aos enquadramentos e regras que em geral essas linhagens de pensamento
privilegiam. Assim, parti para a pesquisa de autores na linha dos estudos
culturais, bem como os pós-estruturalistas que procuram levar em consideração o
centro de outras histórias...
Você
utiliza o termo “poética de resíduos”. O que caracteriza essa poética?
A
ideia de uma poética de resíduos vem tanto da materialidade desses escritos
quanto de seu conteúdo, pois Carolina de Jesus mesclava diversos discursos e
recursos literários na criação de seus textos, escritos em boa parte em
cadernos reutilizados, os quais ela recolhia das lixeiras enquanto exercia seu
ofício de catadora de lixo.
Tem
algum objetivo com este material estudado? Qual será o futuro dos manuscritos?
Felizmente
neste ano conseguimos publicar uma pequenina parte desse material com o apoio
da Fundação Palmares. Espero que este seja apenas o início de uma longa
jornada, permitindo não só a realização do sonho da própria Carolina de Jesus
de ter seus escritos literários publicados, como também dos leitores que
esperam ter acesso à sua literatura. Quanto à preservação da obra tudo ainda
permanece incerto, não há previsão para um trabalho de digitalização completa
do material, única “certeza” de que poderíamos resguardar esses originais, pois
apenas uma parte foi microfilmada e mesmo assim, como sabemos, os microfilmes
também têm uma validade. Além disso, as máquinas leitoras de microfilmes são
ultrapassadas e dificultam a leitura do material, em especial aqueles que já se
encontram quase que totalmente degradados. Estes precisariam passar por um
trabalho sério de restauro e em seguida de digitalização, mas esses cuidados
demandam um alto custo que as instituições não podem e/ou não estão dispostas a
pagar. Segundo opinião de alguns pesquisadores e professores de arquivos,
somente o Instituto Moreira Salles estaria apto para realizar esse importante
trabalho.
É
possível perceber quais as referências que Carolina tem e que aparecem em seus
escritos?
Não
somente é possível perceber a marcante influência dos românticos, do modo como
podemos ler em duas teses publicadas sobre os escritos da autora: Carolina
Maria de Jesus; o Estranho Diário da Escritora Vira-Lata, de Germana de Sousa,
e o recém-lançado A Vida Escrita de Carolina Maria de Jesus, de Elzira
Perpétua; e como podemos acompanhar ao longo de alguns cadernos que desenvolvem
um processo de escrita típico do Journal de Gênese, nos quais a autora faz
referências a seus textos e aos dos autores que estava lendo ou teria lido:
Maupassant, Edgar Allan Poe, Victor Hugo, Chesmman, Saint-Exupéry, dentre
outros. Assim podemos conhecer outras Carolinas, principalmente esta que vai
além do Quarto de Despejo, quero dizer, a que não pode ser reconhecida apenas
sob o martelo do estigma de favelada.
Hoje
temos uma cena mais fortalecida intitulada de Literatura Marginal. Você acompanha?
E o quê em sua opinião tem de Carolina de Jesus neste cenário atual?
Sim,
a dita Literatura Marginal Periférica tem se fortalecido a cada dia e segue
seus propósitos de criar uma “cena literária” que gire em torno da favela.
Carolina de Jesus, assim como Solano Trindade, podem ser considerados
precursores dessa literatura produzida pela voz dos oprimidos, isto é, uma
literatura mais autêntica do ponto de vista da fala marginal, uma escrita de
dentro para fora com vistas a celebrar a palavra como emancipação política e
espiritual no sentido fi losófi co das fomes humanas.
O
que, em termos sociais e históricos, é possível perceber ao ler a obra de
Carolina de Jesus?
Carolina
de Jesus revela uma outra história, a “história menor” que precisa e quer ser
ouvida, uma vivência tanto mais palpável quanto corrosiva, para além dos
majestosos livros de supostos feitos heróicos dos livros de História do Brasil
repleta de falácias, engodos, que sempre visam a interesses políticos. Os
problemas sociais delineados por Carolina estão na sua temática, na
materialidade do papel escrito em seus cadernos reutilizados, encardidos,
tirados das latas de lixo, a escrita “defi ciente” que não corresponde aos
intentos da gramática institucional de uma sociedade que não lhe deu a
oportunidade de avançar e, mesmo com todas essas defasagens, essa grande autora
nos mostra que aquele que se inquieta diante das “atrocidades sociais” jamais
se manterá calado.
Contraditoriamente,
a obra de Carolina é mais reconhecida nos EUA do que aqui. Por que, em sua
opinião, isso ocorre?
Carolina
de Jesus é bastante lida nas universidades norte-americanas em cursos de
história de graduação e pós-graduação com o objetivo de mostrar para seus
alunos um exemplo de uma vida paupérrima, uma mulher negra, pobre e favelada
que narra suas mazelas. Não havendo, necessariamente, uma preocupação em
conhecer a Carolina escritora.
Os
termos “favelada” e “poetisa” são constantes nos escritos dela, mas quando e
como ela se reconhece em cada um?
Carolina
de Jesus se autodenominava a “poetisa da favela” ou uma “idealista do lixo”.
Veja que ela se valia dessas máximas nos momentos de revolta quando desejava
afirmar que somente ela poderia ser a porta-voz dos favelados, pois segundo a
autora era preciso conhecer as adversidades humanas para falar sobre elas, seja
através do discurso poético seja do político.
Como
você descreveria a passagem de Carolina de Jesus neste mundo? E como terminou a
sua vida?
Infelizmente,
após uma nuvem de sucesso, Carolina de Jesus morre pobre e esquecida com
insuficiência respiratória. Termina seus dias no Sítio de Parelheiros, entregue
aos afazeres domésticos e dedicando-se à correção de alguns de seus textos que
haviam sido datilografados por seus filhos. Chegou a entregar dois cadernos
para duas jornalistas: a francesa Lapouge e a brasileira Clélia Pisa, que mais
tarde editaram e publicaram sua obra póstuma Journal de Bitita, mais tarde
traduzido para o português como Diário de Bitita. Em entrevista com estas
jornalistas, foi-me relatado que Carolina de Jesus estava muito “velhinha” e
“desiludida” e apenas disse: “Vejam o que podem fazer com isso aí”, no momento
da entrega dos cadernos. Espero, portanto, com toda força, que muitos trabalhos
sejam realizadas com todos os “isso(s) aí” dispersos e fraturados “por aí”, e
sobretudo que seja publicada sua obra completa e que assim possamos ter acesso
às multiplicidades que emanam do devir-artista, inaudito e envolvente criado por
Carolina Maria de Jesus.
Fonte:
carosamigos
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